segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Alguns pensamentos sobre Tomorrow Stories de Alan Moore

Segura que o texto é longo!

Para muita gente pode ter parecido estranho quando o roteirista Alan Moore, na aurora do seu universo da America´s Best Comics, lançou uma revista mensal com histórias curtas, auto-contidas, com um toque forte de paródia, humor e experimentação. Afinal, o cara se notabilizou por grandes sagas "sérias" como Watchmen, Do Inferno, etc. Mas quem acompanha a carreira de Moore talvez saiba que ele começou na Inglaterra fazendo tiras e depois histórias curtas para revistas como a 2000 AD. E consta que ao longo de sua carreira nunca deixou de experimentar com esse formato de HQs curtas, em parcerias com ilustradores mais alternativos, em publicações igualmente alternativas. E no topo da sua lista de quadrinhos preferidos, entre suas maiores influências, ele costuma citar revistas e séries de HQs curtas: The Spirit (de Will Eisner), os primórdios da revista MAD (quando Harvey Kurztman fazia os roteiros) e uma antologia dos anos 1970, ARCADE (com Robert Crumb, art spiegelman, Kim Deitch, Justin Green, etc.).

A 1a edição da revista Tomorrow Stories surgiu em outubro de 1999, e continha quatro HQs curtas de seis páginas, cada uma estrelando personagens diferentes. Cada personagem tinha um clima específico e o seu ilustrador-padrão. Cobweb era uma oportunidade de brincar com os fetiches de uma combatente do crime e sua parceira em relação lésbica, e era ilustrada por Melinda Gebbie, antiga militante do universo underground, e eventualmente esposa de Moore (também parceira em Lost Girls). Era das séries, a que mais explorava estilos artísticos diferentes, inclusive nos últimos números, desenhistas diferentes. Jack B. Quick por outro lado, era um menino gênio de um ambiente rural puritano dos EUA, que como diria a galera da Sessão da Tarde, aprontava as mais loucas confusões com suas invenções científicas. O desenhista era sempre o ótimo Kevin Nowlan. Greyshirt era basicamente uma homenagem ao The Spirit, com várias experimentações na narrativa, embora o temperamento linha-dura do personagem lembrasse mais O Sombra ou algum personagem do tipo. O ilustrador era o parceiro de longa data, Rick Veitch (colaraborou com Moore em o Monstro do Pântano, Supremo, etc.). Já a dupla First American e U.S. Angel deixava explícita a sátira aos super-heróis e a aspectos do modo de vida americano, em geral. Eram desenhados por outro antigo colaborador, Jim Baikie (Moore assinou com ele uma de suas primeiras sagas: Skizz). A adição tardia ao time de personagens veio com Splash Brannigan, um ser totalmente feito de tinta nanquim, que servia para satirizar inclusive os bastidores da indústria dos quadrinhos. Os desenhos eram de Hilary Barta.

No começo da linha ABC, Moore pretendia dar ao mundo um universo variedade de estilos, cheio de novas possibilidades, mesmo que essas possibilidades fossem muitas vezes uma releitura de antigas propostas... As antologias apresentando tramas curtas, vários desenhistas eram mais comuns antigamente, e hoje em dia estão um pouco em desuso, pelo menos no mainstream. Antigamente, inclusive, se faziam antologias coletando diversas de jornal, o que foi dando origem ao formato "comic book" como o conhecemos. Na verdade, no começo dos anos 80, Alan Moore até já quis experimentar um formato desses com personagens do Universo DC (houve uma proposta dele nesse sentido, antes do lançamento de Watchmen). Eu imagino também que foi uma oportunidade de experimentar narrativas diferentes, com artistas diferentes, e dar trabalho e visibilidade a velhos comparsas como Jim Baikie, Rick Veitch e Melinda Gebbie.

Tomorrow Stories foi uma série que não emplacou muito, talvez tenha parecido humorístico demais para o leitor de super-heróis e complexo demais para o leitor da MAD (revista que há muito tempo deixou de ser explicitamente quadrinhos). Foram somente 12 edições nos EUA.

Eu acabo de ler o volume importado que coleta as seis últimas edições, de 7 a 12. Vou tentar fazer alguns comentários basicamente sobre esse volume, embora possa fazer referência a outros que eu li quando saíram no Brasil (por aqui lançaram pelo menos até o número seis, pela Pandora Books).

Sobre Splash Brannigan, a conclusão a que chego é que por mais que Alan Moore seja bom no humor, ele ainda não é Harvey Kurtzman... nem o Hilary Barta se compara ao time da antiga MAD. Há vários momentos de brilho, mas em geral, o quadrinho seria mais forte se o estilo do desenhista fosse mais autêntico e menos uma diluição de Wally Wood e Will Elder... Ainda assim o resultado final é bastante positivo. Em "A Bigger Splash", o herói entra no mundo das galerias de arte, com muitas citações e brincadeiras metalinguística, que exigiram certamente muita habilidade do desenhista para brincar com os estilos... outros episódios brincam com as convenções de quadrinhos, a indústria da música e do cinema, etc.

As HQs da Cobweb tem um alto grau de experimentação com estilos. Talvez a minha preferida seja a belíssima estória em que Cobweb vai para o espaço... No número 5, há uma história em forma de colagens surrealistas, a história da primeira edição tem uma parte meio fotonovela, outra apresenta-se como uma tira dos anos 30 ou 40.... A arte de Melinda Gebbie é, em geral, a mais pessoal de toda a Tomorrow Stories, embora possivelmente não vá agradar nada aos leitores de super-heróis, e sim aos leitores de quadrinhos alternativos e underground. Nos últimos números, Alan Moore chamou uma das mais peculiares desenhistas dos quadrinhos alternativos americanos para fazer a arte de duas estórias da Cobweb. Foi a artista Dame Darcy, cuja estilo mais simplificado, infantil, caiu como uma luva para uma estória envolvendo personagens de contos de fadas e outra sobre a vida no futuro. Essa última HQ traz um dos roteiros mais originais de Moore nessa revista, sem dúvida um dos pontos altos. Há também uma HQ dela desenhada por uma bastante inexpressiva Joyce Chin, mas esqueçamos isso....

Greyshirt é um bom personagem e muitas de suas estórias envolvem experimentações, não no estilo artístico, mas sim na diagramação e na narrativa. Teve lá seus altos e baixos... algumas histórias são brilhantes neste volume, especialmente na genial “Hit and Run”, que é como se fosse um filme em que a câmera se encontrasse fixa na visão subjetiva do motorista de táxi. A diagramação com quadrinhos longos horizontais e o plano não mudam até o final da HQ. “Thinx” é outra Hq de destaque, com sua narrativa muito bem montada, onde nada é o que parece, e o uso preciso da linguagem e dos balões de pensamento (saiu por aqui num número da Pixel Magazine, aliás). Mas muitas outros episódios do personagem são fracos, uns porque tem roteiros fracos mesmo e também porque nem sempre o traço de Rick Veitch se adequa bem ao tipo de narrativa. Ele é um desenhista até elástico, mas cujo estilo às vezes fica artificial demais, sem vigor.


First American & U.S. Angel estão entre os personagens mais consistentes da revista. Em geral suas Hqs conseguiram manter um nível sempre bom, sempre divertido, e sempre com desenhos de Jim Baikie – que não é nada fora do feijão com arroz, pode falhar em alguns quesitos, diagramações meio confusas, mas tem um estilo próprio, natural, adequado às histórias. Os personagens de Baikie tem uma expressividade sobretudo em relação aos gestos, à postura corporal. As sátiras feitas aos documentários de televisão, à eleição presidencial, à “Quero ser John Malkovich”, às origens dos super-heróis, são ótimas, mas para mim o ponto alto é o resumão da história do século XX... Assim como Splash Brannigan, é bastante influenciado pelas sátiras da MAD e por Harvey Kurtzman. O american way of life é o grande alvo das piadas da série.


No mais, Jack B. Quick é o personagem que aparece menos, e é possivelmente o mais querido de toda a série. Deve ser complicado bolar as estórias dele, ou certamente Alan Moore teria inventado mais algumas – mesmo que sejam gozações, requerem um pouco de familiaridade com conceitos científicos. A identidade visual do personagem fica sempre por conta de Kevin Nowlan – inclusive arte-final e letreiramento, e a sintonia entre arte e roteiro é perfeita. As Hqs dele não são tão verborrágicas como algumas outras de Tomorrow Stories, a diagramação é bem simples, a virtuosidade dos desenhos fazem a “Suspensão da descrença” funcionar muito bem. Neste volume, existem duas histórias dele, a mais genial delas é “The facts of life!” (também saiu na Pixel Magazine), na qual Jack tenta descobrir e evitar os problemas da puberdade. Genial. Taí um personagem que deixou saudade.... De certa forma, são as histórias que narrativamente são mais quadradinhas, mas as tramas são tão absurdas que a gente tem certeza de que nunca leu nada igual!

Então, esse é o saldo de Alan Moore em Tomorrow Stories: muitas opções de estilo, muitos acertos, alguns erros feios, mas no geral é uma rara iguaria de um escritor talentosíssimo mostrando sua versatilidade. Seria legal ver mais coisas assim nos quadrinhos, coisas que brincam com o lugar comum, propostas realmente diferentes... pois é, não é qualquer roteirista que consegue dar conta de uma revista dessas. Mas bem que o pessoal poderia tentar.


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