terça-feira, 14 de dezembro de 2010

quando os vazios da fome não se tem com que cruzar?


Emocionadíssimo lendo Morte e Vida Severina em quadrinhos. Coisa fina mesmo. Adaptação feita pelo cartunista pernambucano Miguel (M. Falcão, de Timbaúba) para o poema de João Cabral de Melo Neto.

O mercado anda saturado de adaptações literárias burocráticas, broxantes, e o trabalho de Miguel é uma das exceções. Ele consegue ter uma vida própria, uma fluidez narrativa, graças ao traço excelente, à esperteza das metáforas visuais!

A versão em desenho animado foi lançada ontem, e está muito bem feita. Recomendo a todos... Podem ser encontrados na editora Massangana (fundaj- Derby - Recife).



















—— Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.

—— Severino, retirante
pois não sei o que lhe conte
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.

—— Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?

—— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.

—— Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?

—— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alarga
e devasta a terra inteira.

—— Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?

—— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.

Nenhum comentário: