sábado, 26 de março de 2011

Recentemente fiz (ainda estamos dando retoques) junto com Raul Souza uma HQ falando sobre a Odisséia. Isso me lembrou deste poema... de Fernando Pessoa.


ULISSES

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —-
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


análise do poema "ulisses"

http://www.umfernandopessoa.com/an%C3%A1lises/poema-ulisses.htm

O poema "Ulisses" enquadra-se na primeira parte de Mensagem: Brasão. A primeira parte, por sua vez, está encimada pela elocução latina Bellum sine bello (guerra sem guerrear). Na primeira parte de Mensagem, Fernando Pessoa expressa a nobreza da intenção.

Ulisses (em Grego Odisseu), foi uma das figuras míticas que chegaram ao nosso tempo através dos dois grandes relatos de Homero: a Iliada e a Odisseia. A tradição posterior coloca Ulisses como fundador de Lisboa. A raiz etimológica da palavra Lisboa vem da palavra Ulissipo – ou cidade de Ulisses. Claro que Pessoa identifica aqui, como tanto lhe agravada, a raiz do mito que conhece depois a realidade, ou seja, um mito que apesar de ser nada é tudo. “O nada que é tudo” é uma expressão que acompanha Pessoa na sua vida, porque ele próprio a determinado ponto deseja ser um mitologista, um criador de mitos, porque via nisso uma alta missão.

A inclusão logo na primeira estrofe de uma referência cristã misturada com uma referência pagã não é inocente. Como cristão gnóstico, Pessoa considerava Deus mais como símbolo do que como objecto de fé, e um símbolo útil, um símbolo utilizável, se quisermos, para reformar a sociedade dos seus tempos. Para os gnósticos, Cristo é o logos, o intermediário racional entre o Deus e o homem, sobretudo símbolo e mensageiro. Por isso se compreende que Pessoa consiga misturar Ulisses com referência a um Deus cristão. Para ele, ambos são símbolo de algo maior, símbolos de um destino a cumprir, que se seguiu à fundação de Lisboa.

A ambiguidade da segunda estrofe, que fala de “este, que aqui aportou” (Ulisses), “foi por não ser existindo” (porque o mito existe não existindo), “não existindo nos bastou” (porque o mito basta enquanto mito para criar algo mais do ele próprio), “por não ter vindo foi vindo. E nos criou” (mesmo sabendo que ele poderá não ter existido, ele existe não existindo e isso basta para criar, para basear a fundação da cidade).

Isso confirma-se na última estrofe: “”assim a lenda se escorre a entrar na realidade”. Ou seja, o mito, a lenda, fecunda a realidade, gerando nela movimento e emoção que de outro modo não existiria. O mito surge como criador, de uma realidade que sem ele seria iminentemente estéril e infecunda: “em baixo, a vida, metade de nada, morre”.

O mito é assim a base de toda a nobreza, porque iniciador. Antes de Viriato, antes de Afonso Henriques, antes de todos os homens reais, há o homem-mito, a raiz da qual flui a energia do futuro, e da qual nasce o alimento para uma vida que sem ela seria pobre e sem fruto”.

Bibliografia: António Quadros, "Fernando Pessoa, vida, personalidade e génio"; Agostinho da Silva, "Um Fernando Pessoa".


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